terça-feira, 23 de junho de 2015

Sem Ana

Há sempre a esperança que as coisas mudem em janeiro.
(Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha)
Daí começa fevereiro
Daí as águas de março vem fechando o verão
Sem Ana.
Talvez ela tenha saído para comprar flores,
Resolvido os seus amores,
Voltado feliz.
Talvez a casa esteja cheia, talvez continue a mesma,
Talvez o menino-Deus a tenha iluminado.
Sem Ana, ao meu lado,
A lavoura ainda é arcaica, o vinho ainda é amargo.
Sem Ana, ao meu lado.
(Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha)
Onde andará Ana? Talvez na Amazônia,
Talvez no céu, se existe,
Porque o inferno é uma certeza.
E o inverno, que persiste.
- Minha cabeça, posta à mesa,
Esperando os cães raivosos, babentos,
Os cães do inferno, violentos,
Que me arranham, à busca do sangue
Que Ana levou consigo.
Sem Ana, não sou comigo:
Só as lágrimas, que formam um mangue,
Já que o mar é sagrado e a cachoeira, doce
Meu sofrimento é salgado, como se fosse
Colocado como eterno.
Sem Ana, o inverno.
O mangue.
Os cães do inferno.
Sem Ana, sem sangue.
Sem pena.
Não há mal que lhe não venha.

Há sempre a esperança que as coisas mudem em janeiro.
Sem Ana, a curta vida de fevereiro.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Pílula

Descrever a insônia
Com detalhes de cirurgião:
Primeiro rasga-se a carne
(Cuidado na incisão)
Depois abre-se o peito:
Há de encontrar alguma metástase.
Prognóstico: um tumor.
Procedimento: levar à análise.
Tratamento: altas doses de quimioterapia.
(Se perde-se o dedo e ficam os anéis,
Perde-se o cabelo e fica a mais-valia
Desse sistema de exploração
De um eu tão eu que chega a ser outro)
Poesia não é a solução:
É só uma saída.
(Pode não levar a lugar algum,
Pode não ser um Messias,
Pode ser tão ridícula)
Pode me envolver em um
Mar
Que rima com amar
Que rima com metástase
Que rima com beleza
Que rima com loucura
Que rima com vozes
Que rima com câncer
Que rima com metástase
Que pede um tratamento
Aplicado, seguro.
Objetivo: aliviar o sofrimento.
(Pode não levar a lugar algum,
Pode não ser Messias,
Pode ser tão ridícula)
Ninguém alivia ninguém da morte
"Por favor, seja forte"
É o que um cirurgião diria.
Não sou cirurgião, mas




Também não sou poeta.
E também não sou profundo:
Sou difuso.
De fuso, cada horário sou um pouco
Até não restar nada, que aí não tem problema.
"Não restou mais nada, resolvemos seu problema"
É o que um cirurgião diria.


Para a metástase, quimioterapia.
Para a dor, uma canção.
Para ter voz, a poesia.
Para mim, a opção
Dessa pílula, mais nada.
A conclusão?
É placebo, eu sei.
Assim como eu.

Tentei.