segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Um dia eu tentei parar de escrever e tudo ao meu redor girava como se uma roda-gigante tivesse tomado o mundo ao meu redor, que girava. Tonto. Eu fiquei. Zonzo. Eu parei. Vomitei. Voltei. Escrevi.
Se pudesse matar todos os meus fantasmas, seria considerado algo como um fantasmacida, um necromante ao contrário, um exorcista de mim mesmo. E dizem que há algo como um jorro, algo como um gozo, algo como um estupro que sai agora de um lugar tão alheio a mim que penso ser eu mesmo e nada faz mais sentido, e tudo faz sentido, e tudo faz. Olhar um jardim florido, dançar embaixo de uma avelaneira, tomar chá de hibisco – e o sol, o sol, o sol. Iluminava um ponto que queimava em mim e fazia um barulho que parecia uma chaleira, que parecia uma panela, que parecia de pressão, alguma coisa acontece no meu coração. Se eu fosse mais claro, seria límpido, seria córrego, seria rio, seria cachoeira. E eu poderia ouvir um rugir, um ronco, uma pedra, um peixe, os jovens se banhando nas águas do Humaitá, mas eu poderia, eu não posso. O sol que me iluminava também era eclipse, era escurecimento, uma nuvem que tapava a peneira por onde escorriam pequenos fluidos meus, pequenos fios meus, pedaços de minhas unhas, de meus dedos, de meus cabelos, de minha pele, pedaços de um sujeito envultado, de um sujeito em vulto. Um vulto. Passando. Se pudesse matar todos os meus fantasmas, seria considerado algo como um fantasmacida, um necromante ao contrário, um exorcista de mim mesmo. 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

hoje acordei com cheiro de gozo:
sonhei que minha boca estava no seu pau
e transbordava.
hoje acordei furioso:
era um gosto forte
e amargava.
hoje acordei ansioso:
queria te engolir
e você me afastava.
eu gozava, você gozava,
eu amava, você negava.
uma coisa boa me fez seu pau:
tive voz pra dizer
que meu bem-querer
era o meu mal.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Um dia, vou compor uma música
para ser lida em dó de quem
se escreve.
O tema são seus olhos verdes,
que estão além
do mar,
que me lembra como era te amar.
Nadei rumo ao farol,
porque quem faz um poema salva um afogado.
Não vi a luz, não vi o sol,
não vi Virginia ao meu lado,
me apontando uma saída.
Como Dédalo, tive uma recaída,
porque algo em mim queimou.
O olho verde me viu,
mas a boca não sorriu,
o mar não voltou.

domingo, 4 de outubro de 2015

Queria ser Proust
e ter o tempo redescoberto;
mas de mim só está perto
algo que não é a memória involuntária.
Uma vontade, canalha,
de que tudo dê certo.
O signo mais incerto
que a imagem do escritor.
Amor, que rima com dor,
e que dá a esse bolor
um cheiro de quase-nada.
Uma gota de chá derramada
mistura-se com a lágrima,
que mistura-se com o mar.
Ao longe, Swann no caminho,
um sorriso no rosto que me deixa sozinho,
procurando minha mãe.
Em fuga, corro em busca
do tempo perdido da fugitiva.
Não sou eu, eu sou ela.
Saída.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Abri os olhos: decidi arrumar minha bagunça.
O pó caiu em cima de mim,
O mundo caiu nas minhas costas,
O desencontro não teve fim.
Tentando dar conta das coisas mortas,
Descobri uma vida para além do caos.
Não estão mortas, estão vivas.
Mortas-vivas,
Um fantasma sólido.
Queria ser mais simplório,
Mas acho que não tem como.
Abri os olhos, cada vez mais.
Arrumei minha bagunça, mas não achei a paz.

sábado, 5 de setembro de 2015

No consultório, eu e a analista.
Ela diva, eu divã.
Perguntou se estava à vista
O meu afã
De Septimus.
Disse que não sabia, ela disse que sim.
Passaram-se décimos,
Milênios, segundos.
Não sabia eu de nada.
"Sentimentos profundos,
Recalcados no seu inconsciente.
A linguagem fala, o sintoma grita.
A vida não é tristeza somente.
Essa dor, não a alimente."
É ridículo meu potencial suicida.
Queria ser Édipo, patricida,
Mas minha dor é burguesa:
Lágrimas postas à mesa,
Roupa suja (quase) lavada.
Minha dor podia ser o mundo,
Eu podia ser tudo,
Mas eu e ela somos nada.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Finjo a vida e finjo a morte.
A vida me escapa;
Na morte, não dei sorte:
Acabei por fingir.
Finjo a palavra no papel,
Finjo que há algo além do céu,
Finjo a ponte do arco, íris
Do teu olho sereno e calmo -
O olho que quis um dia.
Finjo arlequim, finjo colombina.
Finjo amor, finjo alegria.
Fingir, que deu origem à ficção.
Fingir que há um coração
Batendo, e que isso importa.
Fingir que há valor
No sangue da minha aorta,
Que um dia acabará esse bolor.
Finjam comigo que tudo vai dar certo
E que a esperança ta perto,
Que Deus não está no inferno.
Finjam comigo que não é inverno
E que o cravo não brigou com a rosa,
E que ela é infinita,
E que a dor não é aflita,
E que o sofrimento é calado.
Finjam comigo estar ao meu lado,
Nesse eu que é de mim tão absoluto.
Finjam comigo que não é escuro,
Porque fingir é tudo que restou,
E, dentro de mim, nada sobrou.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

8

Hoje saí para comprar flores.
Hoje eu saí de um lugar
- Mas o outro permanecia em mim.
Atravessei a rua, ignorei as dores
Que se conjugam sempre no infinitivo: atormentar.
Hoje eu saí, assim.
O dinheiro no bolso e nada nas mãos,
Livres para comprar flores.

Comprei flores, mas nada mudou.
O vazio ficou insuportavelmente cheio,
O escuro ficou insuportavelmente belo.
Eram rosas vermelhas, mas ninguém olhou.
As pétalas murcharam para algo feio,
Algo disforme; deixaram de sê-lo.
Do alto da escada e da minha embriaguez,
A minha coragem e a covardia gritante.

Nunca mais comprei flores, nunca mais os olhos fechei.
Tudo passa tão etéreo que me torno ridiculamente sólido
Na muralha de névoa em que me envolvi.
Mas sei que na vida tudo são flores:
Um instante de beleza, um instante de aroma.
Um momento de cor, um momento de alegria.
Um constante de podridão, meu constante de espinhos.
("Rosas verás, só de cinzas franzidas,

mortas, intactas pelo teu jardim.")

terça-feira, 23 de junho de 2015

Sem Ana

Há sempre a esperança que as coisas mudem em janeiro.
(Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha)
Daí começa fevereiro
Daí as águas de março vem fechando o verão
Sem Ana.
Talvez ela tenha saído para comprar flores,
Resolvido os seus amores,
Voltado feliz.
Talvez a casa esteja cheia, talvez continue a mesma,
Talvez o menino-Deus a tenha iluminado.
Sem Ana, ao meu lado,
A lavoura ainda é arcaica, o vinho ainda é amargo.
Sem Ana, ao meu lado.
(Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha)
Onde andará Ana? Talvez na Amazônia,
Talvez no céu, se existe,
Porque o inferno é uma certeza.
E o inverno, que persiste.
- Minha cabeça, posta à mesa,
Esperando os cães raivosos, babentos,
Os cães do inferno, violentos,
Que me arranham, à busca do sangue
Que Ana levou consigo.
Sem Ana, não sou comigo:
Só as lágrimas, que formam um mangue,
Já que o mar é sagrado e a cachoeira, doce
Meu sofrimento é salgado, como se fosse
Colocado como eterno.
Sem Ana, o inverno.
O mangue.
Os cães do inferno.
Sem Ana, sem sangue.
Sem pena.
Não há mal que lhe não venha.

Há sempre a esperança que as coisas mudem em janeiro.
Sem Ana, a curta vida de fevereiro.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Pílula

Descrever a insônia
Com detalhes de cirurgião:
Primeiro rasga-se a carne
(Cuidado na incisão)
Depois abre-se o peito:
Há de encontrar alguma metástase.
Prognóstico: um tumor.
Procedimento: levar à análise.
Tratamento: altas doses de quimioterapia.
(Se perde-se o dedo e ficam os anéis,
Perde-se o cabelo e fica a mais-valia
Desse sistema de exploração
De um eu tão eu que chega a ser outro)
Poesia não é a solução:
É só uma saída.
(Pode não levar a lugar algum,
Pode não ser um Messias,
Pode ser tão ridícula)
Pode me envolver em um
Mar
Que rima com amar
Que rima com metástase
Que rima com beleza
Que rima com loucura
Que rima com vozes
Que rima com câncer
Que rima com metástase
Que pede um tratamento
Aplicado, seguro.
Objetivo: aliviar o sofrimento.
(Pode não levar a lugar algum,
Pode não ser Messias,
Pode ser tão ridícula)
Ninguém alivia ninguém da morte
"Por favor, seja forte"
É o que um cirurgião diria.
Não sou cirurgião, mas




Também não sou poeta.
E também não sou profundo:
Sou difuso.
De fuso, cada horário sou um pouco
Até não restar nada, que aí não tem problema.
"Não restou mais nada, resolvemos seu problema"
É o que um cirurgião diria.


Para a metástase, quimioterapia.
Para a dor, uma canção.
Para ter voz, a poesia.
Para mim, a opção
Dessa pílula, mais nada.
A conclusão?
É placebo, eu sei.
Assim como eu.

Tentei.