terça-feira, 5 de junho de 2018

Memorial


Lembra do meu punho
Socando teu rosto
Até arrancar teus dentes.
Lembra do meu amor.
Do meu coração.
Da minha violência desnuda.
Lembra do pretérito.
Lembra.
Lembra que te deixei um violão,
Um poema,
Uma rosa,
Uma marca no pescoço.
Lembra do meu afeto,
Das minhas vísceras,
Das unhas te arranhando.
Lembra da cidade
Que sorriu a nós dois
E que nos abraçou,
Tão bêbada quanto nós.
Lembra da idade,
De todas as idades,
Do nosso amor através das idades,
Quando eu não era herói
E tu não era tu, era outro.
Lembra da minha servidão,
Dos panos que limpei o chão aos teus pés.
Lembra da maldade, do escárnio,
Do maldizer, lembra.
Lembra de mim, encosta no meu peito,
Escreve a minha vida, lê a minha história,
As promessas.
Lembra.


 No meio da vida,
O menino desce aos infernos
Quando eram quatro horas da tarde.
Seus pés abriram ferida
Nos caminhos eternos
De quem pisa quando a brasa arde.
No meio da vida,
O menino desceu aos infernos
Quando eram cinco horas.
Lembrava de uma existência impedida,
Já distante; mas, aos berros,
Sua garganta era torcida
Por gárgulas com sorrisos
De gentis senhoras.
No meio da noite,
O menino dorme, satânico.
Já não lembro o tempo.
Seu sono era açoite,
A canção de ninar, o pânico,
Seu inferno é o pensamento.

Carta da travessia


Escrevo uma carta a teus olhos
E penso como são tão bonitos,
Como me perfura esse tempo de sonho,
Esse tempo de angústia, esse tempo de gritos.
Quero te falar do desarranjo,
Mas não sei até onde sou capaz.
Entre nós dois, um som de flauta,
Uma orquídea, uma promessa de paz.
A infância interdita,
A palavra calada,
A vontade impedida,
Mas, entre nós,
O grito rasgado de uma voz
Que me coloca medo até que durma.
As águas rasas sempre me incomodaram,
Como me incomodam os seus olhos sobre mim
Os olhos que nunca me amaram,
O ruído que nunca tem fim.
Ouça bem a carta do desarranjo,
O futuro mecânico,
O som agudo de tamborim.
Eu te conto todo o passado,
Solto um grito rasgado
E beijo seus olhos,
Que caem sobre mim