segunda-feira, 1 de junho de 2020

Confissão

Olhando os mortos todos os dias,
Tentamos sobreviver.

A pior morte é do nefasto que nos cerca.

Nosso campo não é mais verde.

Olhando para a morte todos os dias,
Não sabemos direito como viver.

sábado, 28 de março de 2020

"Hace frío sin ti, pero se vive"

Meu amor,

Quando tudo isso acabar, as nuvens estarão tão cheias de chuva que acharemos, por um instante, que somos abençoados. Não há tanta felicidade assim pelas ruas vazias, mas lembrar de teus olhos me faz pensar que, talvez, um momento guardado na memória pode ser um ligeiro carinho em minhas costas doloridas pelo cansaço e pela dor de tentar sustentar o peso do que sou.

Não, elas doem por sustentar o peso do que és.

Não, elas doem. E só.

Não doem mais do que um câncer, uma metástase, uma profunda melancolia que isola e atrofia, mas, ainda assim, doem. Não é isso que quero dizer, veja bem, mas elas doem e essa dor me faz pensar que os dias seriam mais leves por complacência divina, ou por costume a dor, ou por lembrar de teu sorriso.

Tanta coisa a dizer e jogo fora uma oportunidade por uma dor nas costas, perdão.

Vou recomeçar, meu amor - merecemos mais que isso, um pobre fluxo de consciência que ocupa mais espaço do que deveria. Não queria ser cruel, mas talvez a minha crueldade seja só uma forma de te trazer mais perto, um jogo sujo, porque sentir teu tapa é melhor que sentir nada, porém não aguento mais te dissimular.

Meu amor, quando tudo isso acabar, andarei em círculos procurando o teu sorriso, encherei as ruas com a esperança de dias futuros travestidos em paz, amor e harmonia - parece até um carnaval idealizado, um daqueles blocos do centro da cidade, lembra? Faltou a purpurina, mas teu brilho cativa mais que qualquer artifício e disputa com o sol - perdão, prometi não ser mais dissimulado.

Mas é verdade, andarei pelas ruas procurando a felicidade e disfarçando a inconsequência, buscando a aparência de teu rosto marcado pelo meu desejo. Pode ser um mundo mais feliz, e, de repente, não serei mais insone e os sonhos serão tranquilos, a infância será rememorada e o país se transformará naquilo que sonhamos quando a maldade era apenas uma semente e uma doença nada significava, e essa carta eram ações, e meu olhar era bondoso, e minhas palavra ainda valia de algo, e eu ainda conseguia dizer: eu te amo.

Sinto sua falta.

Faz frio sem você, mas se vive.

terça-feira, 5 de junho de 2018

Memorial


Lembra do meu punho
Socando teu rosto
Até arrancar teus dentes.
Lembra do meu amor.
Do meu coração.
Da minha violência desnuda.
Lembra do pretérito.
Lembra.
Lembra que te deixei um violão,
Um poema,
Uma rosa,
Uma marca no pescoço.
Lembra do meu afeto,
Das minhas vísceras,
Das unhas te arranhando.
Lembra da cidade
Que sorriu a nós dois
E que nos abraçou,
Tão bêbada quanto nós.
Lembra da idade,
De todas as idades,
Do nosso amor através das idades,
Quando eu não era herói
E tu não era tu, era outro.
Lembra da minha servidão,
Dos panos que limpei o chão aos teus pés.
Lembra da maldade, do escárnio,
Do maldizer, lembra.
Lembra de mim, encosta no meu peito,
Escreve a minha vida, lê a minha história,
As promessas.
Lembra.


 No meio da vida,
O menino desce aos infernos
Quando eram quatro horas da tarde.
Seus pés abriram ferida
Nos caminhos eternos
De quem pisa quando a brasa arde.
No meio da vida,
O menino desceu aos infernos
Quando eram cinco horas.
Lembrava de uma existência impedida,
Já distante; mas, aos berros,
Sua garganta era torcida
Por gárgulas com sorrisos
De gentis senhoras.
No meio da noite,
O menino dorme, satânico.
Já não lembro o tempo.
Seu sono era açoite,
A canção de ninar, o pânico,
Seu inferno é o pensamento.

Carta da travessia


Escrevo uma carta a teus olhos
E penso como são tão bonitos,
Como me perfura esse tempo de sonho,
Esse tempo de angústia, esse tempo de gritos.
Quero te falar do desarranjo,
Mas não sei até onde sou capaz.
Entre nós dois, um som de flauta,
Uma orquídea, uma promessa de paz.
A infância interdita,
A palavra calada,
A vontade impedida,
Mas, entre nós,
O grito rasgado de uma voz
Que me coloca medo até que durma.
As águas rasas sempre me incomodaram,
Como me incomodam os seus olhos sobre mim
Os olhos que nunca me amaram,
O ruído que nunca tem fim.
Ouça bem a carta do desarranjo,
O futuro mecânico,
O som agudo de tamborim.
Eu te conto todo o passado,
Solto um grito rasgado
E beijo seus olhos,
Que caem sobre mim

sábado, 7 de janeiro de 2017

Gênesis

O tempo de um sussurro foi o tempo necessário para que um cristal rebentasse, pegasse fogo, tomasse forma. Naquele orgasmo interdito toda uma vida havia sido desenhada e a Grande Mão, que tudo arquitetava, pegou-a pelos cabelos e jogou-a portões afora, como essas crianças que são levadas à escola no primeiro dia e sentem que há uma epifania faminta por medo. Foi nesse tempo posterior ao cristal lapidado que a garganta ficou seca, o grito preso no estômago. Era o instante da vida que passeava e se sentia acuada pela luz, era o tempo que o relógio nunca marcou e as coisas se reconheceram finitas, e os homens emparedaram as cidades e as crianças não gritavam mais. Um tempo que havia fome, mas não poderiam ser canibais - foi nesse átimo que a refração primordial sofreu e, de repente, não mais que de repente, se encontraram ali.

Não nos encontramos, e era isso que queria dizer, mas me sufoco por qualquer fantasma infeliz que insiste em me julgar digno de sua assombração, mas não se perca, ainda que estejamos perdidos, é um jogo de sombras que nos separa. Repara: quando a luz aí reflete, se consome o meu não-estar. Acalma, que vem uma onda que tudo destrói e recobre cidades, mas acalma que a onda não é onda, é só algo que nos disseram que era onda, mas não é onda, é algo que nos disseram que era oceano, mas podemos chamar de abraço, ou outra palavra que dê a dimensão do que pode fazer o coração ficar um pouco mais quente e bater menos forte, você sabe como é? Aquele momento entre a alegria e a dor, mas não é bem um vazio, é um interregno onde tudo começou.

O tempo de panelas alinhadas no fogão traduz a suspensão exata em que as coisas começam a fazer sentido em seu propósito. Não há fogo, não há alquimia, fome não há mais. O silêncio do chiado das coisas do mundo respira e ensina que o trabalho encerrou por um dia e todos podem descansar para o próximo dia. Podem se deitar, encerrar o sorriso e esperar pela paz da Santa Luz. O último olhar antes de dormir é o tempo do entendimento, da quase-perfeição, é quase o tempo do fim - mas não ainda. É o tempo que prepara o momento das janelas serem abertas e das estrelas cumprirem o seu dever. É o tempo que sustenta o tempo do próprio Tempo.

Veja bem, você que agora senta à luz do computador e se desliga de seu próprio corpo: estou aqui, mas não permaneço, mas estou. A gente anda meio coxo, mas anda, só não se sustenta, Ouve bem o que falo, amor, porque falo com esforço e não sei se sou capaz de manter minha voz, que anda áspera. Há o momento em que nos cruzaremos na rua, vou te queimar com o cigarro, você vai me xingar, vou me desculpar e tudo terá passado. Continuaremos andando coxos e com muletas mais frágeis que nossas pernas. Ainda que não me escute, insisto em gritar, porque olho para você e você é você: a conclusão mais simples, o verso inacabado, a métrica irregular.

A Grande Mão pousa sobre os ombros e diz que devem caminhar. Caminham de diversas maneiras, nem sempre tem clareza sobre seus objetivos, mas caminham. Constroem e não acabam. A Grande Mão muitas vezes acena e sorri; outras, dá um soco tão pungente que deixa hematomas quase eternos. A Grande Mão não mexe em relógios porque sabe que seus ponteiros são falhos e os números, apesar de infinitos, são limitados. O tempo que leva para tecer equivale a tudo que não foi dito, a todos os corações que ressecaram, Escreve de um jeito que não são possíveis pontos finais. Seu tempo é o das unhas que arranham, dão prazer, rasgam a carne e deixam marcas, algumas cicatrizes.

Olha bem em meus olhos e me diz o que não vê. Todas as marcas que trago escondidas, todas elas me levam a você. Esse é o tempo da partida, de todos os abraços de uma despedida, o tempo da minha ânsia, do meu desejo transbordante e do meu amor. O tempo do nosso reencontro, do nosso laço, o tempo desse monstro, desse descompasso. Acalma teu coração ao lado do meu que tudo agora está feito, menos nós. Escuta tua respiração chamando meu nome, que meu corpo grita pelo seu. Escorre teus dedos pelo meu rosto, pela minha boca, e presta atenção nas palavras que digo e ninguém quer ouvir. Ouve teu coração que bate em tempo de flor.

O tempo em que o espírito de Deus boiava sobre as águas.

sábado, 19 de novembro de 2016

As cidades perdidas

Eu andei pelas ruas tentando encontrar um leve cheiro de alfazema que disfarçasse o odor que me parecia tão desconfortável - era um odor que me queimava como um enxofre. Passo por árvores e até por uma rua que vendia flores, mas nada parecia capaz de florescer em mim um antigo jardim. Onde está o cheiro de alfazema? A que vende na farmácia parece ser incapaz, a que está no incenso é doce demais, nenhuma delas pode me trazer paz. Não há cheiro de alfazema nessa cidade.

Eu poderia fazer um defumador com essa alfazema e limpar essa cidade. Tirar toda negatividade, ser São Francisco e me erguer numa inocente espiritualidade. Mas os muros me impedem, as vitrines me enfraquecem e as paredes permanecem me aprisionando. Todo dilema de um homem pós-moderno é ser eterno em sua agonia. Não há alfazema nessa cidade, então procuro por sua companhia.

Ando por aquele beco de bares tão comum a nós e à memória de nossos risos. Quase vejo sua silhueta naquele vestido vermelho que contrastava tão bem com sua pele morena: você é mais que um quadro, é uma pintura. Eu lembro de cada detalhe: uma bolsa grande demais, seus olhos amendoados, o jeito despretensioso de fumar. Duas unhas amareladas pela nicotina, aquela tatuagem ridícula em seu ombro. Mas o que eu sempre amei foi o cheiro de flores que suas roupas tinham de manhã.

Não era um cheiro de alfazema, mas era um cheiro também suave. Era engraçado aquela suavidade estar na sua pele, logo você, que nunca foi suave. Claro que ela sumia depois com o cheiro dos cigarros e do suor, mas ver você de manhã sempre foi uma das minhas imagens preferidas.

Nunca essa cidade seria nossa, ainda que eu passasse mil defumadores de alfazema nela - eu, que durante um tempo tive fé suficiente para nós dois. Por isso a gente mergulhava em um sonho que tudo seria possível, porque éramos possíveis. A gente era o jardim que faltava a essa cidade. A gente era a obra árcade que deu certo.

"'Mas se der certo, não é a gente", você sempre repetiu. E esteve certa. Ainda está, talvez. Daí só consigo escrever essa elegia para duas pessoas que, vivas, se tornaram mecânicas. A cidade que vivemos está perdida. A cidade que criamos está bombardeada. A nossa risada agora é sofrida. As nossas palavras estão abafadas.